quinta-feira, 1 de julho de 2010
Encantamento e Imanência no Filme A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen
Aqui vai um texto que eu escrevi sobre o filme do Woody Allen, A Rosa Púrpura do Cairo.
O filme A Rosa Púrpura do Cairo surge na metade da década de 80, dando um brilho inesperado no mar de monotonia da indústria cinematográfica. Foi bem aceito pela crítica ao contrário de outros dramas de Woody Allen, porém o que marca nesse filme é a exata correspondência entre comédia e drama, entre a realidade e a ficção, entre opostos, que convivem em harmonia. A principal crítica feita ao filme está relacionada ao seu fim trágico. Para os produtores, se o final do filme fosse feliz, seria um sucesso comercial, para os críticos, foi aquele detalhe que faltou para a perfeição. Allen responde que o final não poderia ser outro, senão não valeria a pena nem mesmo realizá-lo. De fato, o final trágico era necessário dentro do filme, somente dessa forma ele pode se efetivar como obra de arte. Com referências do teatro do absurdo, A Rosa Púrpura do Cairo, brinca com a própria arte cinematográfica valendo-se da metalinguagem para introduzir o espectador num mundo totalmente irreal, onde os personagens saem da tela do cinema e têm vontades e sentimentos.
Cecília é uma garçonete norte-americana que sofre as agruras geradas pela Grande Depressão. Vive com o marido desempregado e violento que a explora, a única coisa que ameniza sua infelicidade é a arte que ela consome diariamente no pequeno cinema de sua cidade. Seu olhar para a tela do cinema é mais expressivo do que o que dedica ao marido, mesmo quando aquele a ameaça, sua reação é apática, conformada. Seus olhos só brilham quando está na frente da grande tela, como uma válvula de escape para a sua triste realidade. Sua aparência frágil cativa e incentiva o espectador a desejar a reação dela perante os percalços enfrentados, esperando por algo que a resgate do transe que é sua vida. Este resgate chega quando o mocinho do filme que Cecília via diariamente no cinema pára de atuar e declara o seu amor para ela, sai da tela, e junto dela foge do cinema. Neste momento o filme leva numa viagem de cores e tons, com diálogos primorosos e cenas bem construídas aquele que assiste, como que arremessado da realidade crua para a pura fantasia.
Isto acontece de tal forma que um crítico americano chega a dizer que “A Rosa Púrpura do Cairo é puro encantamento” (DEFANTI; MENEZES apud CANBY, p. 214)., o crítico usa a palavra encantamento como uma qualidade da obra, já que quando um filme de Hollywood consegue encantar, é como um oásis no meio do deserto de filmes áridos que se aproximam cada vez mais da realidade, sem deixar espaço para que brote a imaginação do público. Para tanto é preciso que se escape da pura reprodução da realidade que aprisiona o espectador no seu próprio mundo.
"Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmitica permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade" (ADORNO, 1985, p. 104).
Assim, sem ir além do que o indivíduo encontra fora do cinema, o filme não dá espaço para que o espectador pense e possa analisar a sua realidade criticamente. Por isso é necessário que na arte exista o distanciamento do que é familiar ao mundo daquele que a consome. É assim que se caracteriza a obra de arte, ela transforma a matéria-prima que vem do real para algo além, a sua realidade particular.
"Sob a lei da forma estética, a realidade existente é necessariamente sublimada: o conteúdo imediato é estilizado, os dados são reformulados e reordenados de acordo com as exigências da forma de arte, a qual requer que mesmo a representação da morte e da destruição invoque a necessidade de esperança – uma necessidade fundamentada na nova consciência personificada na obra de arte" (MARCUSE, p. 20).
Marcuse vê como arte transformadora aquela que chegue no auge da criação estética, pois somente dessa forma que o espectador consegue se distanciar de sua realidade, conhecer outro mundo, o da própria obra de arte, para poder pensar a sua realidade
Mas, voltando ao crítico, é claro que o encantamento é necessário, porém A Rosa Púrpura do Cairo não é “puro encantamento”, o crítico se esquece daquele final “não feliz”. Para Adorno, o encantamento pode representar um perigo para a obra de arte, bem distinto do sentido que o crítico entusiasta do The New York Times considera. Para o filósofo, “os momentos de encantamento demonstram-se irreconciliáveis com a constituição imanente da obra de arte, e esta última sucumbe àqueles toda vez que a obra artística tenta elevar-se para a transcendência”(ADORNO, 1989, p. 82) O encantamento se torna prejudicial à obra de arte quando não retorna à realidade, sem permitir ao indivíduo enxergar a sua condição, como mostra Cecília quando vai ao cinema fugir da sua própria vida. Quem a resgata é o personagem, porém ele é fictício: “- Acabo de conhecer um homem maravilhoso. Ele é fictício, mas não se pode ter tudo” ”(A ROSA Púrpura do Cairo). Quando o ator que deu vida àquele personagem fica sabendo do ocorrido, entra na história para resolver a situação que poderia colocar em risco a sua carreira. Ele encanta Cecília com sua condição real, com a possibilidade de amar de verdade, de viver numa outra realidade – que não seja ficção. Mesmo com as possíveis vantagens de se viver numa ilusão, como salienta o personagem fictício, “- Não me machuco, não sangro, nem me desarrumo. Algumas das vantagens de ser fictício” (A ROSA Púrpura do Cairo). Nessa fala fica claro que a decisão da protagonista em ficar com o real determina ao mesmo tempo sua escolha pela possibilidade de se machucar.
A realidade é mais dura que aquele momento de encantamento que se esvai, quando Cecília volta-se para seu mundo, o objeto de sua esperança também se foi e deixou-lhe com sua antiga vida, aquela do começo do filme. Ao passo que os espectadores são trazidos de volta para si, Cecília volta conformada para sua poltrona do cinema, tal qual aqueles se percebem sentados em frente da grande tela, a personagem principal assiste sua própria vida que na verdade não é sua. Com a sensação do vazio o filme termina, com a angústia da vida real que possibilita enxergá-la de fato, como totalidade. A Rosa Púrpura do Cairo é uma obra prima pois seu fim é trágico, já que é necessário esse movimento de volta ao imanente, para que a obra alcance a transcendência. Este fim não agradou o público consumidor que está acostumado ao sempre igual. A angústia é renegada num mundo onde tudo deve ser aparentemente perfeito e não se permite questionar o motivo daquele sentimento: por que o final triste do filme causa angústia? Pois a identificação com aquela mulher em transe, emocionada com o filme fala muito do próprio espectador, que percebe depois de viajar num mundo desconhecido, um pouco mais da sua verdade, numa catarse:
"as fortes tendências afirmativas para a reconciliação com a realidade estabelecida coexistem com as de rebelião (...) elas não se devem à determinação de classe específica da arte, mas antes ao caráter redentor da catarse. A própria catarse baseia-se no poder que a forma estética tem de chamar o destino pelo seu nome, de desmistificar a sua força, de dar a palavra às vítimas – o poder de reconhecimento que proporciona ao indivíduo um pouco de liberdade e de realização no seio da servidão" (MARCUSE, p.23).
O final da Rosa Púrpura do Cairo é arrebatador pois fala pelos olhos do próprio espectador, ao mesmo tempo que imprime a marca do seu criador com autenticidade, livrando-se das amarras comerciais, realiza-se justamente por isso, como uma obra de arte capaz de despertar o indivíduo para sua própria realidade, unindo esperança e angústia numa só concepção de vida. “Minha visão da realidade é que ela sempre foi um lugar triste para estar, mas é o único lugar onde você consegue comida chinesa” (DEFANTI; MENEZES apud ALLEN, 2009, p.216).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. O Fetichismo na música e a Regressão da Audição. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989.
__, HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1985.
A ROSA Púrpura do Cairo. Direção: Woody Allen. Produção: Charles H. Joffe, Robert Greenhut. Intérpretes: Mia Farrow, Jeff Daniels, Danny Aielo. Roteiro: Woody Allen. Fotografia: Gordon Willis. Los Angeles: Orion Pictures Corporation, 1985. 1 DVD (82 min), Widescreen, color. Produzido por MGM (Video & DVD).
DEFANTI, A.; MENEZES, I.(org.). A Elegância de Woody Allen. Realização: Centro Cultural Banco do Brasil. Rio de Janeiro: Sobretudo Produção, 2009.
MARCUSE, Herbert. A Dimenção Estética. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
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Parabéns Carine, adorei!!
ResponderExcluirComente mais alguns filmes.
Beijosss
Valeu Beth, que bom que você gostou, estou pensando em um...
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