sexta-feira, 2 de julho de 2010
Antígona e a Eticidade em Hegel
É impossível falar da lei divina de Hegel sem falar da personagem Antígona da tragédia Antígona, de Sófocles. Pois essa heroína grega não é aqui uma repetição dos papeis que as principais mulheres trágicas representam: esposas e mães - já que a mulher na Grécia antiga possuía papel restrito ao círculo familiar - o que fica claro na interpretação de Hegel. Mas para o filósofo a principal relação que a mulher realiza dentro de seu mundo, que é a família, é a relação de irmã. Antígona tem como papel último e principal o de irmã, logo na primeira cena, o deixa claro ao discutir com sua irmã Ismene. Sua relação na peça é a de irmã, pois é como irmã que, segundo Hegel, a mulher pode reconhecer no homem sua relação ética tranqüila, pois não há o envolvimento de um laço natural, mesmo fazendo parte da mesma família. Assim, o amor de Antígona pelo irmão Polinices é incondicional, por isso ela enfrenta as leis da cidade que certamente a condenariam para poder enterrá-lo devidamente. Assim como este amor, as desgraças de sua família fazem com que a morte seja necessária e agradável para Antígona, como observamos em suas palavras:
Hei de enterrá-lo e será belo para mim
morrer cumprindo esse dever: repousarei
ao lado dele, amada por quem tanto amei
e santo é o meu delito, pois terei de amar
aos mortos muito, muito mais tempo que os vivos (SÓFOCLES, 1989, p. 205)
Na sociedade ética essa relação entre irmãos é a mais importante, “o feminino tem, pois como irmã o mais elevado pressentimento da essência ética”. E o irmão é o momento em que o homem deixa a lei divina e passa a lei humana, a lei da cidade.
No entanto, Ismene, que era tão irmã de Polinices quanto Antígona, não demonstra a mesma disposição dela para defendê-lo, o que causa um choque entre as duas irmãs. Para nós, Ismene a princípio se mostra prudente pois reconhece que a lei maior que vigora na cidade e a qual todos devem obedecer é a lei humana, ou seja, a lei do rei Creonte. Ismene sabe que a oposição a Creonte seria facilmente subjugada, e teme pelo bem da irmã, argumento ao qual Antígona contrapõe com a fatalidade cruel que herda de seus antepassados: um destino infeliz que faz desejável a morte. Contudo a trama de Antígona tem inicio antes mesmo da peça começar, não só com as desgraças da família dos Labdácias, mas algo anterior, o que Hegel descreve como a divisão do espírito entre lei divina e lei humana. Esta divisão da mesma essência faz com que a ação de uma das partes suscite uma reação oposta da outra. O conflito de Antígona começa quando Creonte impõe que Polinices não seja enterrado nem sejam feitos os rituais fúnebres, para ser abandonado a céu aberto. Essa ação de Creonte, que é a lei humana, se opõe à lei divina, pois mesmo que Polinices tenha invadido a cidade que era, segundo a lei humana, por direito de seu irmão mais velho Etéocles, para a outra lei não há distinção entre irmãos, ambos são da mesma família. Dessa forma Antígona reage contra essa ação adversa e decide doar sua vida por essa causa – já que o momento mais importante dentro da lei divina é a morte -, a ação fúnebre é a suprema lei divina, por isso a ação de Creonte fere tão brutalmente os valores da irmã de Polinices. Está dado o conflito no qual ambos os lados sofrerão e se esgotarão na incerteza do destino.
Creonte é a própria inflexibilidade da tragédia, o elemento que precisa ser superado. Ele só vê o seu lado, apenas uma verdade é a certa, pois não consegue enxergar a essência do outro, não percebe que essa essência é a mesma que a sua e que o seu oposto é a base da sua existência. Por outro lado, Antígona também age unilateralmente, pois como Creonte, não reconhece a essência de seu oposto em si mesma. No entanto, Creonte é o foco e objeto de condenação da tragédia, pois sua unilateralidade é praticada de forma aberta – à luz do dia, como é a lei na qual pertence – A lei humana é a lei vigente e por ser dessa forma a sua posição não tolera outra verdade e esmaga qualquer que seja a opinião que lhe seja contrária, por isso Creonte condena Antígona por sepultar seu irmão contra as leis estabelecidas. Antígona deixa clara essa oposição na seguinte passagem:
“Em tuas palavras
Não há - e nunca haja! – nada de agradável.
Da mesma forma, as minhas devem ser-te odiosas”. (Idem, 1989:221)
Mas a lei divina não toma forma apenas na figura de Antígona, seu noivo Hêmon que é também filho de Creonte, assume esse papel frente ao rei. Ele representa aquela essência que passa desapercebida à Creonte: que a lei dos mortos, da família, a lei subterrânea está nele também, pois é sua origem. Mas em sua unilateralidade vê em Antígona apenas uma mulher, ser inferior, sem força, fadada à obediência. De fato Antígona é forçada a o obedecer e aceitar a pena imposta por Creonte: o rei muda a punição prevista que era a de morte por apedrejamento, para confiná-la numa caverna, servida de suprimentos que a manteriam com o suficiente para sobreviver. Pois a morte era seu desejo e se Creonte a matasse estaria cumprindo com o desejo de sua rival. A morte para ela era fruto também de seu interesse unilateral; a mais grave punição para Creonte seria algo desejado para Antígona, tal a oposição de ambos os lados. Ao perceber a intenção de sua “adversária”, a condena então não à morte, mas ao seu contrário, à vida – submetida às condições que a lei suprema opõe -.
A única forma de convencer o rei de seu erro é apelando por sua própria lei: o que proporciona o bem da cidade. Apenas com a previsão de Tirésias, um adivinho de Tebas, alertando que as atitudes de Creonte gerariam a ira dos deuses que se voltariam contra a cidade é que Creonte, depois de muita relutância se arrepende e volta atrás em suas decisões. Ele decide sepultar Polinices e libertar Antígona, mas a ação já havia sido concluída e ao entrar na caverna para libertá-la, Antígona cumpriu com sua própria deliberação e se suicidou enquanto era mantida presa. Antígona foi vencida por Creonte, mas no momento que a lei divina desaparece leva com ela a lei humana, pois ambas possuem a mesma essência. Com a morte de Antígona o filho de Creonte, Hêmon, se mata e em seguida, sabendo da morte do filho, a esposa de Creonte, Eurídice também comete o suicídio. A lei divina reprimida se volta e alcança seu oposto, deixando-o igualmente derrotado, o que pode ser notado nas palavras de Creonte:
Ai! Ai de mim! O autor dessas desgraças
Sou eu e nunca as atribuirão
A qualquer outro entre os mortais, pois eu,
Só eu as cometi, pobre de mim!
Fui eu e falo apenas a verdade!
Levai-me imediatamente, escravos,
Para bem longe, pois não sou mais nada.(1989:257)
Creonte sente a culpa por ter agido, a simples ação nesse mundo ético é culpada, pois por si só inflige a outra lei que é igualmente legítima, assim a ação proporciona necessariamente o sofrimento alheio. Como a de Antígona proporcionou o seu sofrimento, e ela foi condenada por isso, pois sua lei é subterrânea e não possui força de impor seus preceitos contra a lei consciente-de-si. Quando Creonte reconhece por sua vez, o outro lado, deixa então de pertencer à lei humana. Não tem mais o poder de decisão que o fazia forte perante a sociedade, não pode mais decidir nem ao menos sobre o seu fim. Torna-se, portanto, disposição, joguete do destino, não tem mais controle do que acontecerá consigo. Como pronuncia o corifeu:
“Nada mais peças, pois não podem os mortais
livrar-se do destino a eles fixado” (Idem, 1989:258)
Com o fim de Antígona, termina a eticidade que envolvia os dois personagens principais, Creonte e Antígona. Para Hegel, este mundo já estava desde o início destinado à superação. Esses dois lados opostos que pertenciam a uma mesma unidade, eram como idéia uma harmonia perfeita, porém com a sua efetividade através da ação, estes dois lados entram em um conflito mutuamente destrutivo. Este processo determina a superação de uma manifestação particular da eticidade, ambas as leis que formavam um único espírito se esvaem, este deixa de existir como unidade do povo para se dividir na multiplicidade do acaso.
Referências
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes,1992.
SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Jorge Zahar Editor, São Paulo: 2008.
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