Entre as contradições da sociedade burguesa se desenvolve a música que Adorno denomina séria. Sua leitura do mundo cultural no capitalismo tardio parece pessimista ao primeiro contato, principalmente se não se considera seu método e se tomam suas críticas separadamente do contexto social. Isto porque nessa época, o capitalismo industrial impõe os seus mecanismos às manifestações artísticas. Resultado disso é a banalização da arte e a eliminação do indivíduo na impossibilidade da escolha. Imersos na falta de subjetividade, os consumidores da arte industrializada tratam o produto cultural como mercadoria, e alienam-se dando a eles um caráter fetichista, sem reconhecê-los como sua própria realização. Essa desumanidade é o que proporciona, em última instância, a possibilidade de aceitação de movimentos como o nazista, na Alemanha. Essa realidade é totalmente exposta na música atonal de Arnold Schoenberg, em oposição à musica industrializada que nega essa verdade. Os shocks psicológicos e o caos da música atonal revelam a desordem sob a aparência ordenada da ideologia reacionária.
A música atonal é conseqüência da sedimentação histórica que traz na necessidade de inovação que é própria à arte, a transformação da forma de composição que já estava saturada. Na tonalidade, as dissonâncias que geram a tensão na música eram necessariamente resolvidas pela tônica. Essa fórmula de composição foi usada durante séculos, e os compositores contemporâneos herdam o problema da falta de material para desenvolver uma música realmente nova. A saída encontrada pela Segunda Escola de Viena foi a dissonância, essa proposta baseava-se na eliminação da nota tônica e na livre utilização das dissonâncias, ou seja, notas que unidas umas às outras não soam agradáveis aos ouvidos. De fato, o caráter previsível da música tonal chega a um momento que, ao ouvido, perde o brilho. Seu sistema permite que um mesmo tema seja trabalhado diversas vezes, e o apaziguamento dos momentos que destoam acabam por dar a sensação de falta de ousadia. Schoenberg não gostava do termo atonalismo, pois faz menção ao negativo da forma, ou seja, à falta de tonalismo, por isso prefere o termo emancipação da dissonância, pois é na liberdade desses sons que se dá tal sistema.
A conseqüência da música que se vale das dissonâncias é a própria angústia. Seu som incomoda, perturba, causa verdadeira repulsa até aos mais ferrenhos apreciadores da grande música. Um absurdo, intelectualismo, anarquia, são algumas das acusações feitas por partidários do sistema tradicional. A confortável música dos barrocos que tinham suas regras contrapontísticas seguidas à risca, ou a pomposidade da música do classicismo com sua monodia bem construída, são planícies seguras preferidas às incongruências do novo que se configurava. A falta daquela segurança é o que dá sustentação à arte expressionista, pois, se não há parâmetros a serem seguidos o que resta é a expressão do próprio sujeito. Liberto das grades dos estilos, os músicos podiam transformar as formas tradicionais em objetos de sua exteriorização. E essa exteriorização é amarga, posto que o sujeito está sufocado pela sociedade e não encontra espaço para respirar, sua expressão é o caos.
A referência ao caos na música de Schoenberg é analisada por Adorno como resultado do caos da sociedade. Este caos, porém, não é toda realidade: está diretamente relacionado à forma com a qual a sociedade se realiza enquanto se desenvolve passando por cima dos homens, quando uma determinada parte da sociedade se mantém em detrimento de outra. O mundo é caótico para aquela parte da sociedade que sofre enquanto é explorada em favor do desenvolvimento dos mais fortes. Este princípio, que a sociedade capitalista determina, transforma em caos o mundo do indivíduo, que é sufocado sem piedade. Porém, este caos é um momento necessário na dialética: “o caos é a função do cosmos, le désordre avant l’ordre . Caos e sistema são a mesma coisa, tanto na sociedade quanto na filosofia” (ADORNO, 2009, p.44).
Ao ouvir a música atonal a verdade que se quer esconder escapa por entre os dedos da massificação. Sua dignidade vem da possibilidade de tocar nas contradições da sociedade e deixá-la exposta num movimento que deveria ser necessário: a transformação pela dor. Numa negação da música romântica, a dissonância se emancipa de forma polifônica, tornando as contradições mais perceptíveis. Sua concisão, derivada da eliminação dos elementos supérfluos, que levavam a música tonal às prolongadas durações, faz com que o público se afaste dessa música, que tem como finalidade a audição desse público. Essa dificuldade poderia ser o fim da música atonal.
As críticas de Adorno ao método dodecafônico são baseadas nas contradições que se manifestam na música nova como resultado do processo social. Sua contradição está na criação de regras a si mesmo, e é nesse sentido que a música de Schoenberg se aproxima da música de Stravinsky. Porém, Schoenberg ainda é dono de si, e manipula seu método como se quisesse destruí-lo. A técnica dodecafônica acaba sendo não só uma contradição estética, mas também em sua função: deixa de colaborar para a coerência da obra e passa a ter seu fim em si mesma, voltando-se ao caráter fetichista da música de massa. Essa técnica se assemelha às máquinas de sua época que não possuem finalidade, “a função permanece somente como alegoria da “época técnica” (ADORNO, 2009, p. 60). A sustentabilidade da obra de arte entra em questão, já que com a eliminação da aparência se elimina tudo o que não tem função alguma, “a obra de arte plenamente funcional se converte em algo totalmente privado de função” (ADORNO, 2009, p. 61).
Em seu isolamento, a música transforma seu caráter social. “o conteúdo social da verdadeira música está garantido, não pelo ouvido, mas tão-somente pelo conhecimento dos diversos elementos e de sua configuração” (ADORNO. 2009, p. 104). Sua relação com a sociedade não diz respeito à classe social a qual o compositor pertence. O valor da obra de arte não está vinculado ao seu conteúdo político, mas ao fato de ter derrubado a autonomia que a arte conquistou ao longo da história, e através do próprio sujeito se torna a manifestação direta da sociedade. Expõe a desordem social, ao invés de conservar em si uma humanidade como algo dado. Por isso a música nova se isola, não contém em si ideologias, é resultado do envelhecimento da mediação entre infra-estrutura e super-estrutura: é a própria coisa. Essa identidade com a sociedade é antes um enfrentamento da própria realidade, é a busca pela resposta ao caos. Quando assume essa realidade, a música consegue dar “sentido ao mundo sem sentido” (ADORNO, 2009, p. 106). Sujeitando-se, se sacrifica, “Toda a sua felicidade apóia-se em reconhecer a infelicidade; toda a sua beleza, em subtrair-se à aparência do belo. Ninguém quer ter nada a ver com ela, nem os indivíduos nem os grupos coletivos” (ADORNO, 2009, p. 107). Não se quer escutá-la como não se quer compreender a sua própria verdade, que constantemente se nega no mundo das aparências.
A teoria de Adorno se revela através da música atonal, a crítica do filósofo insere o próprio crítico na realidade criticada, assim, a semelhança com a música expressionista pode ser averiguada na própria forma de expressão de seus pensamentos. O caos se revela na falta de linearidade, a verdade está contida em sua análise que se permite observar o objeto introduzindo-se em seu mundo para descobrir uma verdade maior que engloba música e filosofia, respondendo à charada da Esfinge. Sua escrita também descarta o supérfluo, por isso seus textos são concisos e de curta extensão. Sua exposição das contradições sociais são explícitas e falam do próprio leitor, por isso são tão difíceis de serem aceitas e constantemente tachadas de pessimistas. Sua crítica é enquanto método a negação do que está dado e estagnado na falsa perfeição da harmonia.
Adorno percebe que pelo fato da música de Schoenberg estar totalmente banhada no mar revolto da sociedade que revela, pode também ser alvo de críticas. Assim como acontece com sua própria filosofia que vai dialeticamente se permitir a transformação. Por isso as teorias do filósofo não podem ser aplicadas como princípios imutáveis, mas sim tratadas na sua condição de transformação, pois está inteiramente ligada ao contexto histórico. Hoje a música atonal ainda resiste, mas nas mesmas salas de concerto que representam um ritual vazio, sem sentido. A música de massa se revela cada vez mais explicitamente sem consistência, a falsidade escapa por sua face. Indivíduos cada vez mais mecânicos engolem guela a baixo sua padronização, os movimentos ritmados da pista de dança igualam-se aos métodos mecânicos das grandes corporações. Porém não cabe ao intuito deste ensaio introdutório sobre a filosofia da música de Adorno a reavaliação de seu método à música que ouvimos hoje. Cabe deixar abertas as portas que levam à extrema necessidade de que essa crítica se realize.
Referências
ADORNO, Theodor. Filosofia da Nova Música. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
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